2006-08-15

Sub.urbano












O Bicho tem Ouvido muita gente apelidar tudo o que é foleiro, fatela, rasco, bidé, xunguita, de "suburbano". Sub-Urbano: toda a escória do bom gosto, restolho da Humanidade, toda a impossibilidade de existência de vida inteligente. Um universo paralelo de cabeleireiras do Cacém e T0's em Odivelas, a caberem na categoria "antes o poço da morte que tal sorte" na lista de qualidade de vida dos nossos colegas moradores em Alvalade, Cascais ou Oeiras.
Há dias ouvi uma amiga dizer de uma boneca: "Isso é tão Prior Velho!..."

Eu não sei de onde lhes vem este tão vasto conhecimento dos hábitos autóctones dos suburbios lisboetas, da vida na selva.
Em boa fé, irmãos e irmãs, faço soar o meu grito bárbado por cima dos telhados de todos os T1's periféricos do mundo, para vos falar do alto da minha suburbanidade. São 29 anos de testes comprovados.

Ser suburbano é saber que o dia tem 21 horas apenas, porque três são perdidas num limbo de transportes públicos, na trasladação zombie dos nossos pobres cadáveres do dormitório para o Purgatório, do Purgatório para o Dormitório.
É ir a bater com a cabeça no vidro do autocarro da Rodoviária Nacional, quando a manhã está fria demais e a respiração de 50 outros suburbanos se condensa nos vidros.
É parecer a dona Xepa, atafulhada de sacos de compras, mochilas e lancheiras de filhos, sacos de lojas de pronto-a-vestir onde todos os dias levamos o almoço para o escritório.
É ter por certo que o som mais solitário do Universo em expansão é o de um comboio rápido a passar sem parar naquele apeadeiro onde estamos há meia hora à espera de ir para casa.
É saber que quando chegarmos, metade da família estará a dormir.
É trabalhar por turnos, sonhar com GTI's e protestar com o vizinho tunning.
É ainda te tratarem por Tininha, Monas, Gordo ou Cromanhon no teu bairro, aos 30 anos.
É ter sido o orgulhoso dono de um carrinho de rolamentos para fazer corridas lá na rua.
Era jogar ao elástico até a noite cair e as mães virem às janelas gritar pelos filhos numa Babel de Joões, Paulinhos e Anas.
Era ir para o Bairro Alto e ter, invariavelmente, de esperar pelo primeiro cacilheiro ou pelo primeiro autocarro para regressar a casa e dormir no banco da paragem enquanto ele não chegava.
Era fumar uma ganza a seis, sair de casa de bicicleta de manhã cedo e desaparecer o resto do dia para um paraíso sem mães nem berros nem TPC's.
Era combinar porrada com gajos de outros bairros em território neutro e roubar fruta nas quintas.
É ver o metro chegar, hoje, onde há 20 anos era longe demais, onde os parentes não nos iam visitar porque morávamos atrás do sol posto.
É terem-nos assaltado o carro pelo menos uma vez nos últimos três meses.
É olhar a neblina de poluição a pairar sobre uma Lisboa que derrete sobre o sol de Julho.
É ver que o monte à frente da nossa casa, onde, num passado não muito longínquo, pastavam rebanhos, foi catrapilado para nascer mais uma urbanização de prédios-cogumelos iguais ao nosso.
É ficar a par da vida de todos os vizinhos se passarmos 10 minutos na janela das traseiras; 10 minutos antes da hora de jantar, a vida toda bradada aos quatro ventos por entre um coro de tinidos de copos e talheres; 10 minutos de telenovelas às dezenas, em marquises como palcos às dezenas.
É, 30 anos volvidos, comprar a primeira casa noutro suburbio qualquer, cada vez mais fora de mão, cada vez mais a roubar-nos dia e alma e anos.
É ter a certeza que, quem diz não ter tempo para pensar na vida, é porque não anda o suficiente de autocarro.