2007-02-28

Harpa, passarinhos e corpos celestes

"Ela não tem o direito de ser tão maravilhosa".
Foi esta a primeira crítica que li sobre Joanna Newsom. A saber: 24 anos, prodígio da harpa (?!!), voz pura em agudos cristalinos e escalas improváveis, a oscilar entre a lucidez poética e a inocência cândida de uma Heidi esquizofrénica.
"Ys" é o nome do último álbum dela, uma espécie de folk erudita a que a crítica do Times, The Gardian e The Observer dão cinco estrelas (inexplicavelmente, a Rolling Stone só acha que merece umas míseras duas). O disco só tem cinco temas: "Emily" (12:07); "Monkey & Bear" (9:29), "Sawdust & Diamonds" (9:54), "Only Skin" (16:53) e "Cosmia" (7:15). A primeira e a última música são homenagens musicadas à irmã (Emily de sua graça), que é astrofísica. São como um albúm de memórias de duas irmãs com uma infância de campo e linguagens inventadadas com códigos secretos que só elas conhecem, tipo manas Brontë cruzadas com a Tori Amos, em bicos de pés e camisa de noite, à procura de monstros na floresta e cometas no quintal. "Monkey and Bear" é uma fábula à moda antiga, daquelas do La Fontaine, sobre emancipação e descoberta da sensualidade feminina, para a qual só há uma palavra: perfeição. E a harpa?! Que instrumento improvável em folk, não?!
"Ys" foi lançado em Novembro último, com a etiqueta da independente Drag City, e está lentamente a ser descoberto por estas bandas. Eu dei com ele há dois meses e, de repente, percebi que era bom acordar ao domingo e saboreá-lo com uma chávena de café com leite, enquanto o sol da manhã me entra na cozinha.
Isto, sim, é o espírito da paz.

2007-02-23

20 Anos Depois

Capa de "José Afonso", coletânea editada pela Farol

Lá em casa não se ouvia o Zeca.
Nem o Zé Mário, nem o Sérgio Godinho.
Lá em casa nunca se ouvia "Grandola", a canção da decadência, do fim de uma era, desmoralizada constantemente como "palhaçada esquerdista", desligada ou vítima do zapping em cada Abril, quando o cliché das peças jornalísticas a faziam banda sonora atrás de cravos e revoluções e chaimites a subir para o Carmo.

Um dia descobri-o, poeirento, escondido entre dois LP's com tangos do Carlos Gardel, herança envergonhada de uma tia que tinha morrido há uns anos. Tinha o "Maio, Maduro Maio". Pus a tocar na velha mala gira-discos de som roufenho, onde o braço saltava às primeiras rotações ondulantes. Depois, vieram os Filhos da Madrugada, revisitá-lo em meados de 90. Foi por eles que descobri José Afonso. Pela Teresa Salgueiro a cantar o "Maio" e pela Natália Casanova dos Diva a entoar a "Canção de Embalar" como uma oração, pelo Adolfo dos Mão Morta a exorcizar o "Avô Cavernoso", pelos Frei Fado D'El Rei que me fizeram apaixonar por "Que Amor Não me Engana" e pelos Sitiados a gingar com a "Formiga no Carreiro".

Faz hoje 20 anos que o José Afonso morreu – um dia depois de Andy Warhol – numa cama do Hospital de Setúbal, às três da manhã, depois de anos a lutar contra a esclerose lateral amiotrófica. Vale a pena descobri-lo, antes tarde que nunca, longe de bifurcações políticas esquizóides e redutoras, até porque ele era muito mais do que um cantor de intervenção. Foi atrás das raízes populares da música portuguesa, fez dela hino a sério – sem as paternalistas palmadinhas nas costas do Estado Novo ou dos programas da manhã, em directo na TV, com ranchos folclóricos castiços –, acasalou-a sem pudores com a música africana (viveu em Angola e Moçambique na adolescência) e com o que mais viesse.
Para muitos de nós, os tais Filhos de Abril, as letras das tais canções que fintavam a censura estão sabidas de cor, mas soam tão distantes como uma língua estrangeira, quando as cantamos. Podemos, mesmo assim, aprender a desafinar com elas.

Três boas desculpas para ficar em casa hoje:

– Ouvir "José Afonso", a colectânea que a Farol compilou com 30 músicas de 1968 a1981. Está lá tudo, dividido em dois CD's: "Maria Faia", "Canção de Embalar", Milho Verde", "Traz outro amigo também", "Cantigas do Maio", "Coro da Primavera", "Grândola" e outras menos orelhudas.
Ler "Zeca Afonso: o que dizem dele os jovens", o artigo de hoje no suplemento P2 do jornal 'Público', que o excelente João Bonifácio fez com os adolescentes que o eram quando Zeca morreu, do Valete à Cristina Branco, do JP Simões ao Pedro Mexia.
- Ler, aprender e emocionar-se com "Os Lugares de Zeca", na revista Visão desta semana, uma quase literária geografia dos afectos e das músicas de José Afonso, traçada magistralmente pela jornalista Ana Margarida Carvalho.

2007-02-14

My Funny Valentine

Dia de Fecho.
Chefe mal humorado.
Almoço de minguas. Não há ninguém no recreio com quem trocar de lancheiras...
Cafés insípidos, água rala.
Uma tarde de sol lá fora e eu cá dentro.
Cigarros clandestinos no corredor.
Anonimatos de autocarro.
O apartamento em silêncio.
A loiça por lavar de ontem.
Festim de microondas e solidão de televisor.
Os despojos do dia na marmita do almoço de amanhã.
A Gata Emília cheira os restos culpados da urina de ontem, no sofá.
O Glorioso marca aos noventa minutos.
O bairro adormece num borbulhar de bronquites e pieira.
O Sinatra canta-me o "My Funny Valentine".
A Gata Emília sonha com o Fred Astair.