2007-07-25

PROCRIAI, MULHERES DO MEU PAÍS!

"A FUNÇÃO DAS MULHERES É A PROCRIAÇÃO"
A autora desta pérola é Rafaela Fernandes, do PSD Madeira, discursando ontem sobre a aplicação da nova lei da interrupção voluntária da gravidez na região autónoma. Mas não ficou por aqui: "Rafaela Fernandes voltou a causar polémica ao acusar a oposição de 'passar um atestado de menoridade e ignorância às mulheres madeirendes, que não precisam desta lei para tomar uma decisão destas, pois quando precisavam de fazer abortos iam lá fora'." in Público, 25 de Julho de 2007.

Eu cá acho que Rafaela Fernandes se esqueceu (incompreensivelmente) de outras funções marcadamente femininas, como a inclinação biológica para trabalhar com o fogão, o talento natural para levar porrada do marido (se ele não souber porquê, ela, como ser inteligente que é, vai saber de certeza, já dizia o velho ditado...) e uma hiperactividade registada na área do cerebelo responsável pela capacidade de reorganizar mentalmente a disposição dos armários da cozinha enquanto o companheiro penetra vigorosamente a fêmea... sobretudo se o acto tiver como fim último o reforço das futuras fileiras do PSD Madeira.

2007-07-12

Contra-Relógio


Acordas e a primeira palavra que te sai da boca é, inevitavelmente, “merda” ou “foda-se!”, na pior das hipóteses. Acreditando nas balelas new age dos manuais de auto-ajuda com respostas para todos os males da vida, é mau karma garantido para o resto do dia.
Escovas os dentes enquanto fazes torradas, dás comida à gata enquanto atendes o telemóvel, tens seis minutos para arranjar almoço e sair de casa a tempo de apanhar o último autocarro, deixas dois post it’s no frigorífico para te lembrares de coisas que acabarás por esquecer, corres para o quarto em busca do telemóvel. Sais. Voltas a entrar. Corres para a cozinha à procura da carteira. Pisas a gata. Voltas a sair.
O último autocarro que podias ter apanhado passou pela tua paragem há 30 segundos atrás – vês o gajo a dobrar a esquina da tua rua, os fumos do escape a ficarem para trás como uma risada de conspiração cósmica contra ti.
Prometes a ti própria que amanhã é que te levantas meia hora mais cedo para, finalmente, ires aos Correios ou tomares o pequeno-almoço calmamente, sentada à mesa da cozinha a gozar de 15 minutos de paz, enquanto o sol te entra pela janela, tal como faz a tua colega das tretas do zen e do feng shui, a que te atira à cara, todos os dias, a sua organização cronometrada, o equilíbrio perfeito da sua vida feita jardim japonês. Amanhã é que é. Amanhã chega o fim do caos que tens no lugar de uma vida. Amanhã chegam todas as respostas. Amanhã serás tu a antecipares-te ao despertador.


Amanhã, a primeira palavra que dirás, ao acordar, será “merda!”.

2007-03-07

À beira dos 30

É impressionante como podemos andar tantos anos enganados.

Aos 20 pensamos que nos livrámos finalmente das teias de aranha da adolescência, dos seus dramas de faca e alguidar e das suas rebeldias de almanaque, quando começamos a ganhar uns trocos e atiramos um "Até logo" à mãe sem previsão de chegada.
Saímos de casa num dia de chuva, com uma mochila cheia de roupa, meia dúzia de livros e CD riscados e um ou dois recuerdos sentimentais imberbes. Vamos regressando de duas em duas semanas para levar, aos poucos, partes da nossa vida, como orfãos à espera de serem recolhidos do nosso quarto de solteiro cada vez mais vazio.
Se tudo correr bem, ao fim de um mês os velhos já fizeram planos para instalar ali um escritório, uma sala de estar ou uma arrecadação para a tralha.
Se tudo correr mal, deixarão tudo como no dia em que saiste: o urso feliz em cima da colcha pirosa, a boneca zarolha em cima do guarda-vestidos, os posters dos Nirvana saídos na Bravo, amarelecidos e ainda colados às paredes com fita-cola e cuspo.
E de cada vez que regressares, cada vez mais de longe em longe, cada vez mais espaçado, parece-te difícil que dormiste ali, choraste ali, fumaste cigarros clandestinos e deste quecas ainda mais clandestinas ali e tudo se passa como se olhasses para um álbum de família nostalgicamente carregado de momentos longínquos em que todos eram felizes.

Os anos que se seguem são uma sucessão de tentativas de encaixe a novos empregos, novos corpos, novos amigos, novas solidões, novas facturas a abarrotar a caixa do correio, novos enganos.

Um dia, vindo do nada, com o baque surdo de um soco no estômago para o qual ninguém te preparou, percebes que nunca entendeste tão bem a tua mãe como naquele momento. E só ao fim de 30 anos é que te cai a moeda e percebes que ela tinha razão em muita coisa: devias ter aprendido a funcionar com a máquina de lavar roupa, a entregar os impostos a tempo, a fazer um pé de meia, a escolher as melhor as companhias e os empregos.
De repente, percebes que te vai faltando tempo, que lhe vai faltando mais tempo ainda a ela e que, afinal, só agora começam a chegar as primeiras dores de crescimento.

Tenho que começar a ler as letrinhas em rodapé...

2007-03-06

O Gajo da Boina escreveu mais um livro

Ok, rendo-me. O tipo é bom.
Depois de "Mudaremos o Mundo Depois das 3 da Manhã" e "Sou Português, e agora?", Luís Filipe Borges, mais conhecido como o Gajo da Boina ou o Puto dos Pastéis de Nata, lançou mais uma obra de sua lavra: "O Playboy que Chora nas Canções de Amor", da novíssima editora Verso da Kapa.
Aqui se reuniram crónicas inéditas, outras o rapaz escreveu para a Maxmen (onde assina a coluna "Guerra dos Sexos"), contos por estrear e até posts. O Querido Diário de um gajo que, afinal, até é porreiro e está cheio de contradições, como no título, como em todos os humanos normais (pasme-se!). Onde se fala de Yeats e da Nelly Furtado, do Benfica e do Ponto G (qual Santo Graal, qual carapuça!), onde se pondera se, no sexo, é melhor dominar ou ser dominado, para se citar Goethe meia dúzia de páginas à frente.
Um livro com um prefácio no final, feito para um outro livro que nunca existiu; onde as letras se escrevem a branco sob o fundo preto; onde se quis subverter um bocadinho e se conseguiu, um bocadinho, pelo menos na parte do lay out.
Mas o que caiu no goto não foi nada disto. Foi o lado mais deliciosamente piegas do Luis Filipe, com ternas e nostálgicas lembranças de infância e de família e doces descrições de mulheres que não amou.
Fiquei tentada a pensar, depois de ler a crónica "Sara" que, afinal, os homens acreditam em almas gémeas e tal, daquelas a quem não se canta a canção do bandido nem se pergunta "Então, vens aqui muitas vezes?", daquelas por quem nem é preciso estar apaixonado.
Gostei do "Ómega" e de saber que, afinal, havia mais gente a brincar aos Universos Paralelos no sótão de casa, com bonecos desirmanados e casinhas feitas de tábuas e dinheiro falso e felicidades imaculadas.
E deixou-me curiosa a ideia de existir vida nocturna em Fátima.
Tem 140 páginas, lê-se depressa e bem.
Acompanhe-se, a gosto, com Pastel de Feijão ou Jesuíta.

2007-02-28

Harpa, passarinhos e corpos celestes

"Ela não tem o direito de ser tão maravilhosa".
Foi esta a primeira crítica que li sobre Joanna Newsom. A saber: 24 anos, prodígio da harpa (?!!), voz pura em agudos cristalinos e escalas improváveis, a oscilar entre a lucidez poética e a inocência cândida de uma Heidi esquizofrénica.
"Ys" é o nome do último álbum dela, uma espécie de folk erudita a que a crítica do Times, The Gardian e The Observer dão cinco estrelas (inexplicavelmente, a Rolling Stone só acha que merece umas míseras duas). O disco só tem cinco temas: "Emily" (12:07); "Monkey & Bear" (9:29), "Sawdust & Diamonds" (9:54), "Only Skin" (16:53) e "Cosmia" (7:15). A primeira e a última música são homenagens musicadas à irmã (Emily de sua graça), que é astrofísica. São como um albúm de memórias de duas irmãs com uma infância de campo e linguagens inventadadas com códigos secretos que só elas conhecem, tipo manas Brontë cruzadas com a Tori Amos, em bicos de pés e camisa de noite, à procura de monstros na floresta e cometas no quintal. "Monkey and Bear" é uma fábula à moda antiga, daquelas do La Fontaine, sobre emancipação e descoberta da sensualidade feminina, para a qual só há uma palavra: perfeição. E a harpa?! Que instrumento improvável em folk, não?!
"Ys" foi lançado em Novembro último, com a etiqueta da independente Drag City, e está lentamente a ser descoberto por estas bandas. Eu dei com ele há dois meses e, de repente, percebi que era bom acordar ao domingo e saboreá-lo com uma chávena de café com leite, enquanto o sol da manhã me entra na cozinha.
Isto, sim, é o espírito da paz.

2007-02-23

20 Anos Depois

Capa de "José Afonso", coletânea editada pela Farol

Lá em casa não se ouvia o Zeca.
Nem o Zé Mário, nem o Sérgio Godinho.
Lá em casa nunca se ouvia "Grandola", a canção da decadência, do fim de uma era, desmoralizada constantemente como "palhaçada esquerdista", desligada ou vítima do zapping em cada Abril, quando o cliché das peças jornalísticas a faziam banda sonora atrás de cravos e revoluções e chaimites a subir para o Carmo.

Um dia descobri-o, poeirento, escondido entre dois LP's com tangos do Carlos Gardel, herança envergonhada de uma tia que tinha morrido há uns anos. Tinha o "Maio, Maduro Maio". Pus a tocar na velha mala gira-discos de som roufenho, onde o braço saltava às primeiras rotações ondulantes. Depois, vieram os Filhos da Madrugada, revisitá-lo em meados de 90. Foi por eles que descobri José Afonso. Pela Teresa Salgueiro a cantar o "Maio" e pela Natália Casanova dos Diva a entoar a "Canção de Embalar" como uma oração, pelo Adolfo dos Mão Morta a exorcizar o "Avô Cavernoso", pelos Frei Fado D'El Rei que me fizeram apaixonar por "Que Amor Não me Engana" e pelos Sitiados a gingar com a "Formiga no Carreiro".

Faz hoje 20 anos que o José Afonso morreu – um dia depois de Andy Warhol – numa cama do Hospital de Setúbal, às três da manhã, depois de anos a lutar contra a esclerose lateral amiotrófica. Vale a pena descobri-lo, antes tarde que nunca, longe de bifurcações políticas esquizóides e redutoras, até porque ele era muito mais do que um cantor de intervenção. Foi atrás das raízes populares da música portuguesa, fez dela hino a sério – sem as paternalistas palmadinhas nas costas do Estado Novo ou dos programas da manhã, em directo na TV, com ranchos folclóricos castiços –, acasalou-a sem pudores com a música africana (viveu em Angola e Moçambique na adolescência) e com o que mais viesse.
Para muitos de nós, os tais Filhos de Abril, as letras das tais canções que fintavam a censura estão sabidas de cor, mas soam tão distantes como uma língua estrangeira, quando as cantamos. Podemos, mesmo assim, aprender a desafinar com elas.

Três boas desculpas para ficar em casa hoje:

– Ouvir "José Afonso", a colectânea que a Farol compilou com 30 músicas de 1968 a1981. Está lá tudo, dividido em dois CD's: "Maria Faia", "Canção de Embalar", Milho Verde", "Traz outro amigo também", "Cantigas do Maio", "Coro da Primavera", "Grândola" e outras menos orelhudas.
Ler "Zeca Afonso: o que dizem dele os jovens", o artigo de hoje no suplemento P2 do jornal 'Público', que o excelente João Bonifácio fez com os adolescentes que o eram quando Zeca morreu, do Valete à Cristina Branco, do JP Simões ao Pedro Mexia.
- Ler, aprender e emocionar-se com "Os Lugares de Zeca", na revista Visão desta semana, uma quase literária geografia dos afectos e das músicas de José Afonso, traçada magistralmente pela jornalista Ana Margarida Carvalho.

2007-02-14

My Funny Valentine

Dia de Fecho.
Chefe mal humorado.
Almoço de minguas. Não há ninguém no recreio com quem trocar de lancheiras...
Cafés insípidos, água rala.
Uma tarde de sol lá fora e eu cá dentro.
Cigarros clandestinos no corredor.
Anonimatos de autocarro.
O apartamento em silêncio.
A loiça por lavar de ontem.
Festim de microondas e solidão de televisor.
Os despojos do dia na marmita do almoço de amanhã.
A Gata Emília cheira os restos culpados da urina de ontem, no sofá.
O Glorioso marca aos noventa minutos.
O bairro adormece num borbulhar de bronquites e pieira.
O Sinatra canta-me o "My Funny Valentine".
A Gata Emília sonha com o Fred Astair.